Conheces o termo «Train Low, Compete High», É como treinar na reserva para aproveitar mais a gasolina em competição.
Índice
- 1. O que é “train low, compete high”
- 2. Para que serve o train low, compete high
- 3. Funciona ou não?
- 4. Como funciona o train low, compete high
- 5. Recomendo?
- 6. Como realizar o método?
- 7. Principais métodos e efeitos sobre o organismo
- 8. Incógnitas e limitações
- 9. O estômago e o intestino dos desportistas também se treinam
- 10. Conclusões
- 11. Fontes Bibliográficas
- 12. Entradas Relacionadas
O que é “train low, compete high”
“Train low, compete high” é o anglicismo para referir-se a um método de manipulação nutricional onde um desportista de endurance (em outros desportos não faz sentido), treina com uma baixa disponibilidade de glucose e as suas reservas no organismo (glucogénio) para melhorar o rendimento no dia da competição treinando em condições normais.
O método train low, compete high é um “hot topic”, isto é, um tema que atualmente está a ser muito discutido, uma vez que abre uma janela à possibilidade de melhorar a eficácia bioenergética (conhecida comummente como flexibilidade metabólica, ou seja, a capacidade de alterar de um tipo de fonte de energia a outro em função das nossas necessidades) e melhorar o rendimento.
Para que serve o train low, compete high
Desde a década dos anos 50, onde Astrand começou a experimentar a ideia da manipulação do glucogénio muscular para o aumento do rendimento desportivo; surgiram muitas correntes utilizando este princípio.
Sabemos que, durante o exercício físico de alta intensidade, a glucose é o principal substrato energético do organismo, já que o organismo necessita do uso de menos oxigénio para oxidar este nutriente, que é mais denso em oxigénio que as gorduras e que para as utilizar necessitamos mais oxigénio (Boron e Boulpaep, 2017).
Astrand e investigadores deste ramo fizeram uma associação simples:
“Se a glucose é o principal limitador da intensidade, a glucose no organismo é guardada em forma de glucogénio, e se este se vai reduzindo durante o exercício físico; então se aumentar as concentrações de glucogénio terei mais glucose para utilizar e aguentarei por mais tempo.”
Uma associação brilhante naquela época onde os mecanismos biomoleculares que moldavam e catabolismo não eram tão claros.
Os métodos que se utilizaram para isto são simples:
- Reduzir a ingestão de hidratos de carbono uns dias antes da competição, aliado a treinos de altíssimo esforço para “esvaziar” os nossos depósitos de glucogénio.
- Seguido de uns dias (normalmente 2-3) de dieta com alta quantidade de hidratos de carbono para poder conservar mais glucogénio daquele que tínhamos antes de tudo como “mecanismo de reserva se precisarmos dele”
Figura I. Exemplo de método clássico de depleção/supercompensação de glucogénio (Laurent et al., 2000).
Funciona ou não?
O método train low, compete high é um conceito de muito má reputação, o que confunde muita gente.
Quero deixar claro de uma vez por todas:
Para isso temos outros métodos mais simples; o train low, compete high vai mais além. Vamos ver:
Como funciona o train low, compete high
A nível biomolecular
A maioria dos estudos que associam o método train low, compete high a melhorias na flexibilidade metabólica baseiam-se nos modelos biomoleculares que foram propostos depois dos estudos em animais de aplicação do método.
Resumem-se na seguinte imagem:
Figura II. Representação gráfica resumida dos mecanismos biomoleculares que medem as adaptações do train low (Impey et al., 2018).
Os mecanismos investigados através dos quais este método pode melhorar a capacidade de aguentar o esforço e melhorar a utilização de nutrientes são incríveis:
A diminuição da disponibilidade de glucose no organismo aumenta a sinalização de catecolaminas (adrenalina) hidrolisando triglicéridos intramusculares e utilizando os seus ácidos gordos livres na forma de energia; aliado, por conseguinte, aos ácidos gordos libertados dos adipócitos, que antagonizam mTORc1 e ativam AMPK.
Estes mecanismos ativam uma série de proteínas e fatores de transcrição (PPARδ, PGC-1α, NRF-1/-2 e proteínas como p53 e p28) que ativam genes dentro dos núcleos das células musculares que promovem a biogénese mitocondrial.
Isto, unido a uma baixa disponibilidade de glucogénio que ativa AMPK por aumento do rácio AMP:ATP gera uma série de moléculas que possuem a capacidade de sinalizar não apenas o aumento da densidade, mas também da atividade das mitocôndrias, conseguindo que:
Mais trabalhadores e melhor maquinaria para queimar carvão.
Realmente este método promete ser “um antes e um depois” na planificação nutricional e na interação nutriente-gen em modelos “in vitro”; mas há um problema…
A nível funcional
De facto, há u efeito marcado sobre a sinalização molecular (73% de estudos com resultados positivos), a expressão genética (75% de estudos com resultados positivos), e a atividade e densidade de enzimas catabólicas (78% de estudos com resultados positivos) em modelos humanos.
No entanto, quando avaliamos os câmbios reais no rendimento, vemos que somente 37% dos estudos mostram que o método train low, compete high é superior seguindo um período nutricional padrão.
Além do mais, uma grande parte dos estudos que observam este assunto nutrem o “grupo controlado” com dietas baixas em hidratos de carbono (2-5g/kg), pelo que não estão a ser avaliados em igualdade de circunstâncias.
Se o grupo de “comparação” fosse alimentado com 8-12g/kg, a percentagem de estudos que mostram resultados positivos seria muito menor.
Paradigma do umbral de glucogénio
O modelo proposto atualmente através do qual “in vivo” o método train low, compete high funciona é o modelo do paradigma do umbral de glucogénio.
Este método estabelece que as concentrações entre 100mmol e 300mmol/kg de glucogénio em matéria seca são aquelas que permitem manter um rendimento aceitável e ainda assim poder beneficiar dos efeitos moleculares do “train low”.
Figura III. Variações nas concentrações de glucogénio endógeno em estudos com diferentes métodos de exercicio físico. A faixa cinzenta representa o umbral de glucogénio (Impey et al., 2018).
O próprio exercício físico é capaz de ajudar a atingir o ponto ainda que partas de uma alta disponibilidade de glucogénio antes de começar a treinar.
Recomendo?
Não digo que o método train low compete high esteja errado… digo que há que considerar o que sabemos e o que nos apresenta:
Sabemos que o glucogénio é um condicionador da capacidade de manter o esforço físico no tempo, e que também é importante entre outros muitos processos:
- Regulador da percepção do esforço;
- Regulador do equilíbrio entre a síntese e a degradação de proteínas;
- Atua como barómetro metabólico controlando o gasto energético em repouso e regula a contração muscular…
Na verdade, que te interessa condicionar tudo isto?
Sabemos que concentrações inferiores a 75mmol de glucogénio/kg de tecido seco alteram a capacidade de manusear o cálcio por parte do retículo sarcoplasmático, fazendo com que a nossa contração muscular máxima diminua.
E como o controlar?
Vais estar a fazer biópsias musculares no vasto externo antes e depois dos teus treinos?
Vais aplicar o método sem saber o que é?
Claro! Como muitos outros sistemas. Logicamente, são realizados sob controlo e monitorização de uma equipa multidisciplinar de profissionais da saúde. Se não, não vale a pena.
Como realizar o método?
Se decides aplicar este sistema de periodização nutricional tenta não aplicar a todas as tuas sessões de treino; é um erro…
Limita o sistema “low” a sessões de baixa intensidade, onde o nosso RER (RQ) é menor e não precisamos de tanto oxigénio e, portanto, utilizamos mais gorduras durante o treino.
Figura IV. Densidade energética e coeficiente respiratório associado à oxidação predominante dos diferentes nutrientes (Boron e Boulpaep, 2017).
Podes aplicar o método através de diferentes sistemas, cada um deles deve ser programado de forma diferente, já que possui características particulares que são interessantes para um momento ou outro da temporada.
Principais métodos e efeitos sobre o organismo
Estratégia de Dieta-Exercício | Principais Resultados | Aplicação Proposta |
Exposição crónica a uma dieta baixa em carbohidratos | Redução na disponibilidade de hidratos de carbono a nível muscular durante todas as sessões de treino dependendo do grau de restrição que se aplique. | Talvez em fases de treino extremamente ligeiro. Não é um método recomendável. |
Baixa disponibilidade de hidratos de carbono em geral: Efeitos no organismo incluindo o sistema imunitário e o sistema nervoso central. | ||
Sessões duplas de treino (baixa disponibilidade endógena de hidratos de carbono na segunda sessão do dia limitando a duração e da ingestão de hidratos de carbono no período de recuperação depois da primeira sessão) | Redução da disponibilidade de carbohidratos endógena e exógena para o músculo durante a segunda sessão de treino. | Em fases de treino onde não se alcancem altas taxas de esforço de forma sistemática dos treinos, partindo do princípio de que a segunda sessão sempre realiza-se em VT1 ou abaixo desse nível. |
Redução aguda na disponibilidade de hidratos de carbono para os sistema imunitário e sistema nervoso central, dependendo da duração da restrição de hidratos de carbono e das necessidades da segunda sessão. | ||
Treino depois do jejum noturno | Redução na disponibilidade exógena de hidratos de carbono para o músculo numa sessão específica. | Dias de treino de “recuperação” ou “manutenção da forma”. |
Redução potencial na disponibilidade de hidratos de carbono endógenos se há uma inadequada restauração do glucogénio no dia anterior. | ||
Treino prolongado com ou sem jejum noturno e/ou restrição da ingestão de carbohidratos durante a sessão | Redução das fontes de carbohidratos exógenas para o músculo durante a sessão específica. | Nunca, salvo simulações específicas de ultra-distâncias (maratonas, ironman…). |
Redução aguda na disponibilidade de carbohidratos para o sistema imunitário e o sistema nervoso central, dependendo da duração da restrição de hidratos de carbono e das necessidades energéticas da sessão. | ||
Restrição de hidratos de carbono durante as primeiras horas da recuperação | Poderia fornecer uma disponibilidade energética suficiente durante a sessão mas restringir para as atividades de sinalização pós-exercício. | Em dias onde não se realizem sessões duplas e portanto não exista a necessidade de repôr o glucogénio perdido a curto prazo. |
Figura V. Estratégias de aplicação do train low e principais manifestações orgânicas; adaptado de Burke, 2010. Aplicações fonte própria.
Periodização nutricional
Uma possível periodização nutricional seguindo este método é a proposta feita por Impey et al., (2018):
Figura VI. Calendário proposto para a aplicação de um sistema train low num microciclo de treino de um corredor que treina 4 dias por semana com um método conjugado (Impey et al., 2018).
Adaptar o método individualmente
Este esquema deve ser adaptado ao método de treino de cada indivíduo, mas serve para dar uma imagem mental em como sequenciar a disponibilidade de glucogénio num microciclo de 4 sessões com diferentes cargas de treino por sessão.
- Historial desportivo;
- Características biológicas;
- Grande quantidade de fatores individuais do desportista.
Incógnitas e limitações
Atualmente são propostas 4 grandes incógnitas no que diz respeito ao método train low, compete high que até que não se resolvam não nos permitirão avançar na compreensão da sua utilição e aplicação real num desportista:
Umbral de glucogénio
- Existe realmente um umbral (intervalo) de glucogénio onde sucedem as adaptações mediadas pelo método?
- Como é que o umbral é afetado pelo treino? (porque sabemos que não acumula a mesma quantidade de glucogénio num desportista que num indivíduo sedentário, pelo que o intervalo deveria deslocar-se).
Utilizar em sessões de baixa ou alta intensidade
- Dever-se-ia relegar o “train low” sempre para sessões de baixa intensidade, ou pode ser aplicado deliberadamente a sessões de alta intensidade (ainda que às custas da redução da carga de trabalho absoluta) para que realmente se possa optimizar a sinalização metabólica da sessão?
Quantidade de carbohidratos
- Qual é a quantidade mínima de hidratos de carbono que podemos ingerir, e quais as concentrações de glucogénio necesárias para facilitar períodos de “train low” sem comprometer a intensidade absoluta do treino durante as sessões específicas?
Calorias ou carbohidratos
- O aumento da resposta de treino está associada a um “train low” de carbohidratos ou de energia (calorias)? Seja como for, como devemos periodizar e estruturar as intervenções do treino para não induzir faltas de adaptação?
Como podemos ver, existem muitas perguntas sem resolver e, por isso, o “train low, compete high” é um «método que ainda usa fraldas».
O estômago e o intestino dos desportistas também se treinam
E não nos podemos esquecer que reduzir ampla e deliberadamente o consumo de hidratos de carbono também pode diminuir a capacidade de os digerir e absorver corretamente, uma vez que, no melhor dos casos, um desportista treinado pode consumir 5-6mmol/kg de matéria seca/hora; no melhor dos casos…
Figura VII. Modelo proposto de métodos para treinar o intestino, os seus efeitos fisiológicos e os seus benefícios condutores (Jeukendrup, 2017).
Conclusões
O método train low compete high é um sistema de periodização nutricional que está muito em voga atualmente.
Ao nível biomolecular, tem um grande potencial, no entanto, ao nível funcional os seus efeitos ficam colapsados por um bom treino e planificação nutricional.
Grande parte dos praticantes do sistema train low compete high aplicam estratégias que os prejudicam mais do que os ajudam, por desconhecimento profundo deste sistema.
Precisamos de ferramentas de medição específicas para poder aplicar corretamente este método.
Ainda existem incógnitas acerca dos mecanismos que subjazem às respostas fisiológicas que produzem o método.
Fontes Bibliográficas
- Boron, W., Boulpaep, E. (Eds.) (2017). Medical physiology: a cellular and molecular approach Philadelphia, PA: Saunders/Elsevier.
- Burke, L. M. (2007). New issues in training and nutrition: Train low, compete high? Current Sports Medicine Reports, 6(3), 137–138.
- Burke, L. M. (2010). Fueling strategies to optimize performance: Training high or training low? Scandinavian Journal of Medicine and Science in Sports, 20(SUPPL. 2), 48–58.
- Hawley, J. A., & Burke, L. M. (2010). Carbohydrate availability and training adaptation: Effects on cell metabolism. Exercise and Sport Sciences Reviews, 38(4), 152–160.
- Impey, S. G., Hearris, M. A., Hammond, K. M., Bartlett, J. D., Louis, J., Close, G. L., & Morton, J. P. (2018). Fuel for the Work Required: A Theoretical Framework for Carbohydrate Periodization and the Glycogen Threshold Hypothesis. Sports Medicine, 48(5), 1031–1048.
- Jeukendrup, A. E. (2017). Periodized Nutrition for Athletes. Sports Medicine, 47(Suppl 1), 51–63.
- Jeukendrup, A. E. (2017). Training the Gut for Athletes. Sports Medicine, 47(Suppl 1), 101–110.
- Laurent, D., Schneider, K. E., Prusaczyk, W. K., Franklin, C., Vogel, S. M., Krssak, M., … Shulman, G. I. (2000). Effects of Caffeine on Muscle Glycogen Utilization and the Neuroendocrine Axis during Exercise 1 . The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 85(6), 2170–2175.
- Mata, F., Valenzuela, P. L., Gimenez, J., Tur, C., Ferreria, D., Domínguez, R., … Sanz, J. M. M. (2019). Carbohydrate availability and physical performance: physiological overview and practical recommendations. Nutrients, 11(5).
- Morton, J. P., Croft, L., Bartlett, J. D., MacLaren, D. P. M., Reilly, T., Evans, L., … Drust, B. (2009). Reduced carbohydrate availability does not modulate training-induced heat shock protein adaptations but does upregulate oxidative enzyme activity in human skeletal muscle. Journal of Applied Physiology, 106(5), 1513–1521.
- Murray, B., & Rosenbloom, C. (2018). Fundamentals of glycogen metabolism for coaches and athletes. Nutrition Reviews, 76(4), 243–259.
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